Mel e Abelhas Brasileiras
No Brasil, há uma razoável diversidade de abelhas e do mel que elas produzem. José de Anchieta já percebeu isso em suas viagens no século XVI, quando registrou, até o momento, cerca de 20 espécies de abelhas brasileiras. Notou que elas produziam seu mel e cera de formas também variadas, desde usando troncos de árvores até abaixo da terra. Em alguns casos, o mel era venenoso – especificamente o chamado pelos índios de Eiraaquãyeta, que fazia com que as pessoas passassem mal. Outro viajante, Auguste de Saint’Hilaire, também escreveu sobre esse e outros tipos de mel descobertos em terras brasileiras.
Apesar da descoberta longínqua desde os índios, nem o mel nem a cera proveniente das abelhas nativas foram sempre bem utilizadas. Nos primeiros três séculos depois do descobrimento do país, alguns estudiosos defendem que a Uruçu era a espécia brasileira mais utilizada no país, mas outros documentos apontam que, na verdade, a cera mais comum nessa época vinha da África.
Já no século XIX, por volta de 1850, o estudo das abelhas brasileiras ganhou destaque sob o nome do farmacêutico Theodoro Peckolt, que observava as abelhas sociais, Trigonildas. Sua pesquisa serviu como objeto de estudo também de um pesquisador britânico, Frederic Smith. Entretanto, Peckolt notou que um ou outro mel indígena não apresentava sacarose, e isso fez com que a produção proveniente de abelhas nativas não fosse incluída na Farmacopeia Brasileira.
Pouco depois, Frederico Augusto Hannemann trouxe as abelhas europeias ao Brasil, sendo então considerado o “pai das abelhas”. Em sua fazendo Abelina, no Rio Grande do Sul, ele produziu por anos um mel muito popular, e o sucesso das europeias acabou fazendo com que os estudos sobre as abelhas brasileiras fossem quase completamente esquecidos.
Brasil vs o estrangeirismo do mel
Na década de 1940, farmacêuticos passaram a reestruturar a Farmacopéia Brasileira. Elsior Coutinho publicou, em 1941 na Revista Brasileira de Farmácia, uma defesa das abelhas nativas como produtoras de mel. Ele afirma que deve ser investigada a razão pela qual o mel da espécie estrangeira Apis mellifica é preferível em detrimento do mel brasileiro, produzido por diferentes espécies. Ele declara que o mel feito com abelhas Manda-saia, Jatahy ou Uruçu possuem melhor qualidade em todos os sentidos do que o mel europeu. A consistência, o sabor e o uso de suas propriedades medicinais é superior, então não haveria razão pela qual o mel brasileiro devesse estar excluído do Código Nacional de Farmácia.
Um professor de Farmocognosia do Paraná contra-argumentou Elsior dizendo que não valia a pena o esforço para estudar as abelhas e o mel nativo, pois a produção delas era inferior à produção das estrangeiras. Elsior respondeu que esse era um argumento fraco, proveniente de alguém que nunca havia estado no norte do Brasil, onde as abelhas Uruçu (Melipona Scutelaris) produzem mel encontrado em toda a região. Não haveria, portanto, qualquer déficit econômico em questões de nível de produção.
De qualquer maneira, a discussão sobre esse assunto continuou, mas não houve mudanças significativas na legislação brasileira a respeito das abelhas nativas por muito tempo.
Atualmente
O melhor mel de abelhas brasileiras atualmente vem das Meliponíneas, abelhas indígenas sem ferrão. Elas são superiores às abelhas europeias em todos os aspectos já apontados por Elsior: consistência, sabor, propriedades farmacêuticas e até ambientais. Ainda assim, elas são subjugadas pelo domínio do mel estrangeiro. Os supermercados são lotados do último, enquanto que não é tão simples encontrar mel brasileiro.
O problema é que, mesmo hoje em dia, ainda vivemos sob regulamentos da década de 1950. Eles se baseiam em características das abelhas Apis Mellifera, o que significa que só é considerado mel o que tem propriedades similares ao que é produzido por elas. O mel indígena tem menos açúcares, é mais líquido e essencialmente é diferente, então ele não chega mesmo a ser considerado mel pela legislação. Ou seja, é clandestino, mesmo sendo nacional.
Segundo o professor da USP Paulo Nogueira-Neto, isso acontece por razões burocráticas que também afetam países como México e Venezuela. Até 2004, até o manejo desse tipo de abelha sem ferrão era proibido. Agora, elas podem ser criadas, mas seu mel segue impedido de ser comercializado. A venda do melhor mel brasileiro é, portanto, proibida.
Entretanto, é verdade o que se dizia sobre questões econômicas, pelo menos no que diz respeito às Melioponíneas: essas abelhas realmente produzem menos mel, o que torna o produto final consideravelmente mais caro.
A única maneira que os produtores têm encontrado para tentar trabalhar com essas abelhas, enquanto não há uma legislação que respeite suas características, é desumidificar o mel. Por enquanto, não se sabe se esse processo atrapalha as propriedades antibióticas e o gosto do produto. Os produtores estão presos em um limbo entre tentativas desse tipo e a legislação brasileira, que não avançou nas últimas décadas e ainda dá preferência para o que vem de fora.