Neomodernismo, Terceira Fase do Modernismo ou Geração de 1945 são designações da literatura em prosa do período de 1945 até 1960. Nessa fase, predominaram dois expoentes da literatura brasileira: João Guimarães Rosa e Clarice Lispector. O regionalismo de Rosa é bem diferente daquele praticado nas décadas de 1930 e de 1940 por José Lins do Rego e Graciliano Ramos e o intimismo de Clarice é bem mais profundo que o dos romances psicológicos anteriores.
Apesar das significativas diferenças entre as narrativas de Rosa e de Clarice, ambos apresentam algumas posturas comuns, como a insubordinação aos processos romanescos de até então (não seguiram o romance regionalista e psicológico da década de 1940) e a utilização diferenciada da linguagem. Por isso (e por outras razões), esses dois escritores são considerados instrumentalistas, o que significa dizer que trabalhavam, da forma mais artesanal e criativa possível, a linguagem, a palavra. As diferenças entre Rosa e Clarice aparecem no fato de ele ter a realidade e o mundo mítico do sertanejo como referenciais, ao passo que ela toma como fio condutor de suas narrativas o mergulho na alma de personagens isolados e problemáticos, sem muito referencial na realidade.
João Guimarães Rosa (1908-1967)
É possível afirmar que o autor inventou um dialeto ou uma nova língua, tão grande é o emprego de arcaísmos, onomatopéias, inversões sintáticas, justaposições e aglutinações de radicais, ritmos, cadências e aliterações. Observe, como exemplo, o início de Grande Sertão: Veredas.
– Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser-se viu; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão; determinaram – era o demo. Povo prascóvio. […]
• Sagarana (1946) – contosAve, Palavra (1970) – contos
• Corpo de Baile (1956) – novelas: “Manuelzão e Miguilim”, “No Urubuquaquá, no Pinhém”, “Noites do Sertão”.
• Grande Sertão: Veredas (1956) – romance
• Primeiras Estarias (1962) – contos
• Tutaméia – Terceiras Estarias (1967) – contos Estas Estarias (1969) – contos
A ficção de Guimarães Rosa, além de ter levado à categoria de objeto estético um território geográfico quase esquecido – o Sertão -, firmou-se como um marco importantíssimo na literatura contemporânea do Brasil, ao empregar uma linguagem totalmente inovadora na elaboração de seu único romance e de seus contos. A linguagem singular e inovadora é uma recriação da fala do sertanejo. Guimarães Rosa, que falava fluentemente vários idiomas, deu a essa fala nova estrutura sintática e misturou-lhe novas palavras (neologismo).
Grande Sertão: Veredas é a obra-prima de Guimarães Rosa, romance que é a fala de Riobaldo, ex-jagunço do norte de Minas Gerais. Riobaldo tornou-se fazendeiro e barqueiro no Rio São Francisco e conta a um doutor, que ali chegara de jipe, a sua vida passada. À medida que narra os casos de vingança, de perseguições e de lutas pelo Sertão, vai refletindo sobre os problemas advindos dessas ações. O narrador preocupa-se sempre com o seguinte: saber se o demônio existe ou não. Pretende que não, pois, se existe, sua alma está partida, já que, na juventude, fizera um pacto com o diabo para vencer o jagunço Hermógenes.
Além dessas questões, há os casos amorosos de Riobaldo, principalmente sua paixão pelo jovem jagunço Reinaldo, conhecido por Diadorim, filho do chefe Joca Ramiro. Essa paixão era o grande drama de Riobaldo, pois Diadorim era um homem e, segundo o código de moral do jagunço, homem não ama homem, tornando impossível a paixão. O chefe é morto por Hermógenes, o jagunço do mal protegido pelo demónio. Posteriormente, Diadorim vinga a morte do pai, matando Hermógenes, mas também acaba sendo morto. Quando o corpo de Diadorim foi despido para receber a roupa de enterro, vê-se que era uma mulher, criada para agir como homem. Riobaldo, surpreendido com essa descoberta e decepcionado pela morte do seu amor, torna-se barqueiro no Rio São Francisco.
Sagarana (saga: história; rana: parecido com) são nove contos (histórias) em que o autor tematiza o bem e o mal, os pequenos e os grandes dramas do sertanejo, a perseguição e a procura, o abandono, as brigas e desencontros por questões de amor, a humanização de bichos e plantas, a mitologia das pessoas do interior.
Em Guimarães Rosa, o sertão é o mundo. Ora ele é mágico, mítico, medieval e particular, ora é universal e infinito ou, ainda, “o sertão é dentro da gente”. Por isso, pode-se afirmar que o autor fez uma literatura regionalista (afinal, o sertão é Minas Gerais), universalizando-a. Daí o que se costuma dizer da obra de Guimarães Rosa – regionalismo universal.
Clarice Lispector (1920-1977)
Algumas obras:
• Perto do Coração Selvagem (1943) – romance
• Lustre (1946) – romance
• A Cidade Sitiada (1949) – romance
• Laços de Família (1960) – contos
• A Legião Estrangeira (1964) – contos
A Paixão Segundo G.H. (1964) – romance
• Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres (1969)- romance
• A Hora da Estrela (1977) – romance
• Um Sopro de Vida (1978) – contos
“Os meus livros não se preocupam com os fatos em si, porque, para mim, o importante é a repercussão dos fatos no indivíduo”. Essas palavras de Clarice Lispector explicam o que acontece na obra dela que, com a de Guimarães Rosa, constitui-se no que de melhor se escreveu no Brasil da Terceira Geração Modernista.
Seus personagens, representantes da situação alienada dos indivíduos das grandes cidades, geralmente são tensos e inadaptados a um mundo repetitivo e inautêntico, que os despersonaliza. Os narradores que aparecem em sua obra estão sempre contestando a linguagem literária padronizada. No trecho a seguir, um personagem de Um Sopro de Vida fala pelo autor: Eu queria escrever um livro. Mas onde estão as palavras? Esgotaram-se os significados. Como surdos e mudos, comunicamo-nos com as mãos.
Mais do que esses dois aspectos mencionados, predomina na obra de Clarice Lispector a introspecção psicológica. Nela, rompe-se a narrativa referencial, isto é, ligada a fatos e acontecimentos. O que existe é uma narrativa interiorizada, centrada em um momento de vivência da personagem (ou do narrador). É possível até que um acontecimento exterior desencadeie o fluxo de consciência: um fato exterior pode liberar ideias que vão até o inconsciente do personagem e daí decorre todo um mundo literário complexo, metafórico, interiorizado.
No conto “Amor”, publicado em Laços de Família, a personagem Joana vive um cotidiano comum de mãe, esposa e dona-de-casa. Joana parece feliz nesse triângulo de funções preestabelecidas impostas pelo sistema social vigente à mulher. Em um dia qualquer, Joana vai de ônibus ao supermercado. De dentro do veículo, de repente, ela vê, na rua, um cego mascando chiclete. Essa visão (epifania) a desestabiliza e a faz empreender uma viagem dentro de si mesma, obrigando-a a se questionar acerca da sua existência como mãe, esposa e dona-de-casa.
Em A Paixão Segundo G.H., a personagem-narradora G.H., após tomar o café-da-manhã, dirige-se ao quarto da empregada que deixara o emprego. Lá, subitamente vê uma barata saindo de um armário. Esse acontecimento (epifania) provoca-lhe uma náusea impressionante, mas, ao mesmo tempo, torna-se o elemento motivador de uma longa e difícil análise da sua própria existência, sempre muito acomodada.
A seguir, um fragmento da obra:
O que era pior: agora eu ia ter que comer a barata mas sem a ajuda de exaltação anterior, a exaltação que teria agido em mim como uma hipnose; eu havia vomitado a exaltação. E inesperadamente, depois da revolução que é vomitar, eu me sentia fisicamente simples como uma menina. Teria que ser assim […] Eu não queria pensar mas sabia. Tinha medo de sentir na boca aquilo que estava sentindo, tinha medo de passar a mão pelos lábios e perceber vestígios. E tinha medo de olhar para a barata – que agora devia ter menos massa branca sob o dorso opaco.