Enredo linear e não linear
Toda narrativa possui um enredo. Ele está presente em toda arte que se proponha a contar histórias, seja qual for o estilo ou o objetivo do autor. O enredo está presente no cinema, no teatro, na literatura e até na dramatização proposta pelas escolas de samba nos desfiles de carnaval, tanto que o quesito enredo é julgado pelos jurados.
O enredo é o conteúdo de qualquer narrativa – também chamada de trama, que é o conjunto de conflitos e interações entre os personagens nela envolvidos.
Em tempos passados, nos primórdios do carnaval, era comum que os desfiles apresentassem, ao longo de seu desenvolvimento, uma sequência de fatos, dispostos em ordem cronológica. Essa ordem formal está presente, inclusive, na música que acompanhava o desfile.
A partir do final da década de 70, principalmente, essa abordagem começou a mudar, ao ponto de, nos dias atuais, muitos enredos serem desenvolvidos a partir do cruzamento de fatos históricos diversos e sem qualquer relacionamento direto, sem haver preocupação em se estabelecer uma sequência cronológica desses fatos.
É quase uma espécie de brincadeira, um desafio à plateia; uma busca de conferir dinamismo e certo requinte à narrativa.
Abordagem linear e não linear
Esse processo teve início muito antes, na literatura. Através dos tempos, o hábito de contar histórias se desenvolveu a partir da própria percepção de temporalidade das pessoas. Os enredos seguiam o ritmo da vida, que consiste em nascer, crescer, envelhecer e morrer, não havendo registro de quem tenha experimentado uma existência diferente.
Essa abordagem do enredo é chamada de linear, pois narra uma sequência de fatos em ordem cronológica, precisamente da forma como ocorreram, sejam eles reais ou imaginários.
A abordagem não linear não altera a sequência dos fatos, e sim a forma como eles são contados. O marco, na literatura brasileira, foi o romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis. Trata-se de uma narrativa proposta pelo personagem central da trama, que decide contar suas memórias depois de morto. Talvez por maior proximidade, opta por iniciar a narrativa pelo final – ou seja, pela sua morte.
A abordagem não linear se caracteriza por não dispor os acontecimentos numa sequência cronológica. Nela, o autor se permite idas e vindas ao longo da narrativa, conferindo-lhe maior dinamismo e, se feito de forma bem dosada, tornando-a mais agradável.
Alguns dos recursos usados na abordagem não linear são os saltos, cortes, retrospectivas, antecipações e rupturas temporais e espaciais. Todos esses recursos são, na verdade, a aplicação dos fluxos da mente levados à narrativa. A mente humana não aborda os fatos de forma linear, misturando-se as lembranças com a imaginação, favorecendo a interpretação e a dúvida como elementos da narrativa, o que lhe confere densidade e, em alguns casos, maior identidade entre leitor, o autor e o personagem.
Essa quantidade de variáveis envolvidas em uma narrativa está bastante presente em “Crime e Castigo”, de Dostoiévski. A narrativa, quebrada e densa, imita o fluxo mental. Já em “Cem anos de solidão”, de Gabriel Garcia Márquez, estabelece para o leitor uma dificuldade de perceber o tempo em que se dá a narrativa por conta da forma como o autor trafega entre episódios, conectando personagens sem que se estabeleça durante a narrativa qualquer preocupação com a temporalidade.
Outras técnicas de estruturação
É aceitável estabelecer uma classificação das técnicas de estruturação da narrativa de um enredo com base nessa dualidade: linear e não linear. Entenda-se por linear a abordagem que segue uma disposição cronológica dos fatos ao longo da narrativa, enquanto fica sendo não linear toda técnica que subverta essa formalidade.
Talvez seja correto, também, dividir o conjunto de técnicas não lineares em subgrupos, ou reconhecer que não cabe considerar a divisão das técnicas de estruturação em linear e não linear.
O importante é que essas técnicas existem, como é o caso do contraponto dramático. Seria essa técnica um modelo próprio ou uma subdivisão dentro do grupo das narrativas não lineares?
O contraponto dramático é a narrativa construída a partir de perspectivas diversas, ao ponto de propor a coexistência de diferentes protagonistas. Essa é uma técnica que está bastante presente em “Viva o Povo Brasileiro”, de João Ubaldo Ribeiro, que conta casos que misturam realidades históricas e personagens fictícios a partir de várias perspectivas individuais, temporais e geográficas.
Outra técnica muito comum é a narrativa em paralelo, onde duas temporalidades distintas são narradas simultaneamente, geralmente envolvendo os mesmos personagens. É um recurso muito comum para fugir da literatura nos roteiros cinematográficos. Em geral, o personagem vive uma trama no presente à qual se mistura uma trama do passado, que se sustenta a partir das suas lembranças.
O importante é que a proliferação de técnicas e a liberdade de estilos favorecem a criação. Sem dúvida alguma, se observadas as possibilidades estéticas de um desfile de escola de samba a partir das abordagens do enredo, a possibilidade de melhores espetáculos é bastante real, assim como é muito mais pródiga uma literatura que pode beber dos ativos trazidos pelo romantismo, pelo realismo, pelo naturalismo e pelo realismo fantástico. Beneficia-se o autor, sai ganhando o público.